Quando o vinho deixa o copo e vira arma de festa
Em Haro, uma pequena cidade da região de La Rioja, em Espanha, o vinho não se limita à mesa ou ao copo — ele voa pelos ares. Todos os anos, no dia 29 de junho, celebra-se a famosa Batalla del Vino, uma das festas vínicas mais excêntricas da Península Ibérica.
Os participantes vestem-se de branco, colocam um lenço vermelho ao pescoço e enfrentam-se numa guerra simbólica onde o único objetivo é encharcar os outros com vinho tinto. O resultado? Roupas roxas, sorrisos manchados e uma comunhão popular que remonta ao século XV.
Este evento integra-se na Ruta del Vino Rioja Alta, um itinerário reconhecido oficialmente que atravessa a região de La Rioja, articulando práticas ligadas à produção vinícola com o património cultural e histórico local.
Origem da Batalha do Vinho
A tradição nasceu de uma peregrinação à gruta onde repousavam os restos de San Felices de Bilibio, um eremita do século VI. Com o passar dos séculos, a romaria foi ganhando um carácter festivo, com refeições partilhadas e celebrações populares durante os dias de São João e São Pedro.
No final do século XIX, os primeiros “bautizos de vino” (banhos de vinho) foram registados. A partir daí, o aspeto religioso e pagão fundiram-se definitivamente, dando origem a esta festa única, onde a bebida regional se tornou protagonista absoluta.
Regras da batalha
Veste branco e leva lenço vermelho – o uniforme não oficial.
Ataca primeiro – quanto mais vinho nos outros, melhor.
Traz o teu arsenal – sulfatadoras, pistolas de água e garrafões são bem-vindos (mas nada de vidro).
Canta e ri – o espírito da festa está acima de tudo.
Quem estiver seco, é alvo – não deixes ninguém escapar.
Desconfia até dos amigos – aqui, ninguém está a salvo.
Segue a música – as bandas tocam até a última gota.
Quando vir caracóis e carne grelhada, é hora do almoço – a batalha terminou, mas a festa continua.
Outras tradições vínicas curiosas
Se pensas que Haro é caso único, enganas-te. O vinho tem dado origem a celebrações singulares por toda a Europa e além.
Maratona do Médoc (França)
Uma corrida de 42 km no coração de Bordéus, onde os atletas são convidados a provar mais de 20 vinhos ao longo do percurso. Há também ostras, queijo e música. Conhecida como “a corrida mais louca do mundo”, este evento anual, que parte da pequena localidade de Pauillac, alia o rigor físico de uma maratona oficial de 42,195 quilómetros à leveza do espírito festivo e à cultura do vinho.
Criada em 1984 por um grupo de cinco amigos locais, a prova rapidamente ganhou fama pelo seu carácter irreverente. Ao longo do percurso, os atletas atravessam vinhas e propriedades históricas.
Aqui, os participantes são incentivados a correr mascarados — segundo um tema que muda todos os anos — e a fazer várias pausas não para hidratação com água, mas para provas de vinho. O percurso inclui estações de degustação, bancas de ostras frescas, entrecosto grelhado e até sobremesas, tudo oferecido pelas vinícolas e produtores locais. O ambiente é reforçado por mais de 40 atuações musicais distribuídas ao longo da prova.
Anualmente, apenas cerca de 8500 corredores conseguem garantir inscrição, apesar de o número de interessados ultrapassar largamente esse valor, com participantes oriundos de mais de 70 países.
Corrida do Vinho e da Pera Rocha
Portugal também tem o seu próprio exemplo desta união entre desporto e tradição vínica: a Corrida do Vinho e da Pera Rocha, realizada anualmente no Bombarral.
Na sua 14.ª edição que foi marcada para 7 de junho de 2025, este evento combina um espírito competitivo com a promoção dos produtos locais.
Organizado pelo Clube Desportivo do Bombarral, com o apoio do município e da Associação Distrital de Atletismo de Leiria, o evento oferece provas para todas as idades, desde os mais jovens (escalões bambis a juvenis) até aos veteranos, com a prova principal de 10 km a arrancar às 19h00. O percurso, que parte da Junta de Freguesia de Bombarral e Vale Covo, ainda será oficialmente medido pela Federação Portuguesa de Atletismo, mas é cuidadosamente planeado para integrar zonas urbanas e espaços vinícolas.
Os atletas da corrida principal recebem, entre outras ofertas, uma garrafa de vinho, camisola técnica e acesso a abastecimentos ao longo do percurso — sendo possível adquirir, por 6€, uma refeição regional que inclui bifana, sopa (da pedra ou caldo verde) e bebida.
Apesar de se tratar de uma prova com critérios competitivos claros — incluindo classificações por escalão, prémios para os três primeiros lugares de cada categoria e troféus coletivos —, o ambiente que se vive é de festa local, com envolvimento da comunidade e valorização da produção agrícola e vitivinícola do concelho.
O vinho como cultura viva
Em Haro, o vinho voa. Em Pauillac, corre-se ao seu lado. No Bombarral, brinda-se à sua mesa depois de cruzar a meta. Cada uma destas celebrações — tão distintas quanto semelhantes — revela como o vinho pode ser ponto de encontro, manifestação cultural e espelho de uma região.
Não se trata apenas de degustar um bom vinho ou de cronometrar uma corrida. Trata-se de olhar para o vinho de forma diferente e de fazer algo diferente e um pouco louco. Num mundo cada vez mais acelerado e impessoal, estes acontecimentos recordam-nos que existem momentos simples, mas muito felizes, que podem ser contados em histórias interessantes e fascinantes.