Na vila de Esmoriz, onde o mar encontra a terra e o som do martelo do tanoeiro há séculos marca o ritmo das oficinas, nasceu um projeto que une duas artes aparentemente distantes: a música e a tanoaria.
A tanoaria é uma arte ancestral que consiste no fabrico de vasilhames em madeira para o armazenamento do vinho e mais recentemente aguardente/cachaça. Desenvolvia-se junto das zonas ribeirinhas, intimamente ligadas às regiões de produção vinícola. A palavra é sinônimo de tanoa («ofício da tonoaria»), que por vez vem do termo da língua bretã Tanu, que significa carvalho….
Assim surgiu o Bandopipo, um instrumento que traz no corpo um pipo e na alma as melodias da tradição.
Criado por mãos que conhecem bem o ritmo da terra, o Bandopipo mostra como a tradição e a criatividade continuam vivas nas comunidades que o produzem.
A Orquestra de Bandolins de Esmoriz
A Orquestra de Bandolins de Esmoriz, criada oficialmente em 1984, representa uma continuidade de um movimento musical popular que acompanhava os espetáculos de teatro da região. Desde então, a Orquestra tem reunido músicos de diferentes gerações, mantendo viva a prática do bandolim português e de outros instrumentos de plectro, como a bandola, o bandoloncelos e o bandolão.
Atualmente, sob a direção de Luís Sá, o grupo conta com cerca de 20 músicos, com idades que atravessam mais de seis décadas, o que permite uma partilha de saberes e experiências que vai além da música.
O repertório da orquestra percorre géneros diversos, do clássico ao popular, com arranjos próprios e composições originais, refletindo a versatilidade das cordas dedilhadas. Os projetos da Orquestra de Bandolins de Esmoriz incluem concertos em igrejas, onde a música dialoga com a arquitetura e a história, e gravações que procuram valorizar o contributo dos instrumentos com trastes no panorama musical.
O Bandopipo: Quando o Pipo Faz Música
Foi numa conversa entre amigos e mestres de ofício que a ideia do Bandopipo germinou. “E se um pipo pudesse cantar?”, terá sido o pensamento inicial que, em 2018, lançou o desafio de transformar este símbolo da tanoaria num cordofone funcional.
O processo foi tudo menos imediato: a escolha do pipo, o estudo das proporções, o desenho do braço e da caixa de ressonância exigiram meses de experimentação e paciência.
O resultado: um instrumento com afinação de bandola, capaz de conter mais de dois litros de vinho no seu interior, sem que o líquido interfira na qualidade sonora.
O Bandopipo é um exemplo de como a função pode encontrar a forma de maneira inesperada. As vibrações das cordas percorrem as paredes do pipo, numa metáfora sonora do vinho que repousa e se transforma dentro da madeira.
O instrumento não só preserva a função original do pipo — guardar o vinho — como lhe acrescenta um novo propósito: o de guardar melodias e boas memorias.
Uma Viagem Musical pelo Ciclo do Vinho
Para dar corpo ao Bandopipo na programação da orquestra, foi criada a Suite Bandopipo, uma peça em três movimentos que narra, em sons, o percurso do vinho:
- Da Aduela ao Pipo – A construção do pipo, com a madeira a ganhar forma ao som de acordes que evocam o labor do tanoeiro.
- Amadurecimento – Um andamento mais sereno, que traduz o ciclo da videira e o tempo de espera na adega.
- Vindima e Partilha – Um final festivo, onde a música se aproxima dos ritmos da vindima e do brinde entre amigos.
Este percurso musical, escrito por três compositores — João Martins, Pedro Martins e Luís Sá.
Esta canção ilustra o trabalho árduo e, ao mesmo tempo, profundamente respeitado — dos viticultores, que depositam um pedaço da sua alma em cada vindima.
Como afirmou um enólogo, o ciclo de nascimento do vinho dura cerca de nove meses — o mesmo que uma gravidez humana.
Entre o Palco e a Adega
O conceito Pipacústica24 nasceu da vontade de cruzar a apresentação musical com a experiência do enoturismo. Durante os concertos, são projetadas imagens que mostram o processo da tanoaria e as vinhas, criando uma ligação entre o que se vê, o que se ouve e o que se prova.
Para os turistas, trata-se de uma experiência especial e invulgar, que combina um concerto magnífico, as subtilezas da arte de fabricar barricas e, naturalmente, a prova de vinhos.
Um dos momentos mais memoráveis é a degustação de um vinho que esteve dentro de um instrumento musical e que, metaforicamente, absorveu emoções musicais.
Este tipo de evento adapta-se a diferentes espaços: adegas históricas, salas de concerto ou mesmo locais ao ar livre ligados ao património vitivinícola. O objetivo é simples: criar um contexto em que o vinho e a música possam dialogar com as pessoas.
O projeto junta saberes antigos — o do tanoeiro, o do luthier, o do músico — e recorda como, no trabalho coletivo, podem nascer ideias que valorizam o património local.
O Bandopipo ilustra como, em Esmoriz, a música e o vinho se cruzam numa relação de respeito pelas origens e abertura à experimentação. O pipo, outrora apenas recipiente de vinho, torna-se caixa de ressonância de um som que transporta consigo o eco do lugar.
Como bem diz o provérbio: “Quem canta, seus males espanta” — e é essa força simples que o Bandopipo carrega consigo.
Tal como o vinho, a música feita com ele acompanha as festas, os trabalhos e os momentos de encontro, mantendo viva a ligação entre alegria, tradição, cultura e comunidade.
Foto do Mário Lisboa e site Orquestra de Bandolins de Esmoriz